Frank Richard Stockton, (
1834-1902)nascido na Filadélfia, foi um dos mais populares e importantes
escritores norte-americanos de sua época. De humor inteligente e muita
imaginação na literatura infanto-juvenil, nas comédias do cotidiano e nos contos,
que abordavam o oculto e o sobrenatural. Suas coletâneas de contos de fadas
inovadores, muito populares no final do século XIX, eram cheias de humor e sem
o cunho didático das histórias infantis moralizantes de sua época. Stockton
criticava, com muita criatividade, a ganância, o abuso de poder, a violência e
muitas outras falhas humanas através de aventuras fantásticas, porém muito
realistas, de seus personagens excêntricos. Mas sua obra mais conhecida é “The
Lady, or The Tiger?”, ( A mulher ou o Tigre?)pela qual será sempre lembrado
através de muitas e muitas gerações de leitores. Este conto foi escrito
originalmente para ser lido numa reunião
da sociedade literária a que o autor pertencia. Mas, o desfecho intrigante e
desafiador da história gerou muita curiosidade e especulação entre os ouvintes,
que Stockton resolveu publicá-la. Até hoje os leitores continuam tentando desvendar o mistério.
O Conto
“Muito tempo atrás, existia um rei semibárbaro. Suas ideias, apesar de
continuamente aperfeiçoadas e estimuladas pela rápida expansão dos seus
vizinhos latinos, permaneciam primitivas, disparatadas e irrefreáveis, como se
viessem de sua metade ainda bárbara. Era um homem de imaginação exuberante e,
sobretudo, dotado de tão irresistível autoridade que, de acordo com sua
vontade, suas fantasias se transformavam em fatos. Como era seu próprio
conselheiro, bastava concordar consigo mesmo para que seus desejos se tornassem
realidade. Enquanto os membros dos seus sistemas domésticos e político se
moviam suavemente na direção que o rei apontava, sua natureza era afável e
cordial; porém, se surgisse um pequeno obstáculo e um dos seus satélites saísse
da devida órbita, ele se mostrava ainda mais afável e cordial, pois nada o
agradava mais do que desentortar o torto e alisar à força qualquer
irregularidade. Dentre as ideias importadas que tornavam seu barbarismo mais sofisticado
estava a arena pública. Nela, através das exibições de coragem e força de
homens e de feras, as mentes dos súditos eram refinadas e educadas. Contudo,
mesmo lá, os caprichos exuberantes e bárbaros se faziam presentes. A arena do
rei era construída não para dar ao povo a chance de ouvir a rapsódia dos
moribundos gladiadores, nem para dar a ele a oportunidade de testemunhar a
inevitável conclusão de um conflito entre opiniões religiosas e mandíbulas
famintas, mas sim para propósitos mais adaptados para ampliar e desenvolver as
energias mentais das pessoas. Esse vasto anfiteatro, com galerias circundantes,
subterrâneos misteriosos e passagens ocultas, era um agente de poética a mulher
ou o tigre? justiça, onde o crime era punido e a virtude recompensada pela
decisão do imparcial e incorruptível acaso.
Quando um súdito era acusado de um crime importante o suficiente para
interessar ao rei, anunciava-se publicamente que num dia determinado a sorte da
pessoa acusada seria decidida na arena real. A estrutura bem merecia esse nome,
pois, ainda que sua forma e arquitetura fossem emprestadas de outrem, seu
propósito emanava apenas do cérebro desse homem que, por conter a realeza em
cada átomo de seu corpo, não defendia outra tradição que não a plena satisfação de seus caprichos, e que impunha a força de seu idealismo
bárbaro a toda e qualquer forma de ação e do pensamento humanos.
Após a multidão se acomodar nas galerias e o monarca, rodeado pela sua
corte, ocupar o camarote real, ele dava um sinal; em seguida, uma porta se
abria e o súdito acusado era introduzido no anfiteatro. Do outro lado da arena,
bem à sua frente, havia duas portas, absolutamente iguais em forma, dispostas
lado a lado. Era dever e privilégio da pessoa sob julgamento encaminhar-se para
as portas e abrir uma delas. O réu podia abrir a porta que desejasse: não
estava sujeito a qualquer influência ou orientação, apenas ao supracitado
imparcial e incorruptível acaso. Abrindo uma delas, surgiria um tigre faminto,
o mais feroz e cruel que tivesse sido encontrado, que imediatamente se lançaria
sobre ele e o faria em pedaços, como punição por seu crime. Nesse momento, em
que o caso do criminoso fora assim decidido, os sinos soariam lugubremente, as
carpideiras contratadas gritariam seus lamentos e a vasta audiência, com cabeça
curvada e coração entristecido, tomaria o caminho de casa, desolada porque
alguém tão jovem e belo, ou velho e respeitável, merecera um destino tão
horrendo.Porém, se a pessoa acusada abrisse a outra porta, dela sairia uma
mulher, a mais adequada em idade e condição social que Sua Majestade pudesse
selecionar entre suas belas súditas. O acusado e essa mulher casar-se iam
imediatamente, como recompensa pela sua inocência. Não importava que o acusado
já tivesse esposa e filhos ou que estivesse comprometido afetivamente com
alguém de sua escolha: o rei não permitia que qualquer compromisso anterior
interferisse no seu grande plano de retribuição e recompensa. A cerimônia,
assim como no caso da outra escolha, acontecia imediatamente na própria arena.
Outra porta se abria sob o balcão do rei e surgia um padre, acompanhado por um
balé de virgens soprando clarins dourados e por um coral entoando poemas
epitalâmicos. O religioso e seu cortejo se dirigiam ao centro da arena, onde aguardavam
o recém-julgado e a noiva prometida; o matrimônio era prontamente realizado e
devidamente festejado. Em seguida, os sinos de bronze repicavam alegremente, as
pessoas da audiência saudavam o casal com fervor incomparável, e o réu
inocentado, precedido por crianças que espalhavam flores no caminho, levava
para sua casa a jovem noiva.
Esse era o método semibárbaro escolhido pelo rei para exercer a
justiça. Sua perfeita imparcialidade é óbvia. O criminoso não sabia que porta
escondia a mulher: ele abria a que escolhesse, sem ter a mínima ideia se, no
instante seguinte, estaria despedaçado ou casado. Em algumas ocasiões o tigre
saía por uma porta, outras vezes pela outra. As decisões desse tribunal eram
não apenas justas, mas também determinadas com clareza: a pessoa acusada seria
instantaneamente punida se fosse considerada culpada; e se fosse inocente,
seria recompensada no mesmo instante, quisesse ou não. Não havia como fugir aos
julgamentos da arena do rei. Essa instituição era muito popular. Quando os
súditos se reuniam nos dias de julgamento, não podiam prever se testemunhariam
uma sangrenta carnificina ou um alegre matrimônio. Esse elemento de incerteza
emprestava um encanto especial à ocasião que, talvez, não fosse possível de
outra maneira. Assim, as massas eram entretidas e satisfeitas, e a parte
intelectualizada da comunidade não tinha como duvidar da imparcialidade dessa
instituição: não estava nas mãos do próprio acusado a responsabilidade da
escolha?
Esse rei semibárbaro tinha uma filha, tão florescente quanto seus mais
ostentosos caprichos e com uma alma tão ardorosa e dominadora quanto a do
monarca. Como geralmente acontece nesses casos, ela era a menina dos olhos
dele, numa adoração que sobrepujava a de qualquer outro mortal. Entre seus
cortesãos estava um jovem rapaz, com a nobreza de caráter e a deficiência de
sangue azul tão comuns aos convencionais heróis de romance que se apaixonam por
altivas princesas. A princesa real estava muito satisfeita com seu apaixonado,
pois ele era o mais belo e corajoso jovem de todo o reino; e ela o amava com um
ardor tão intenso que apenas o barbarismo de seu sangue poderia explicar Esse
romance desenvolveu-se alegremente durante muitos meses, até o dia em que o rei
descobriu sua existência. Ele não hesitou nem vacilou no cumprimento de seus
deveres. O jovem foi imediatamente jogado na prisão, e foi marcado o dia para
seu julgamento na arena real. Essa, sem dúvida, era uma ocasião especialmente
importante, e o monarca, assim como seu povo, estava enormemente interessado
nos preparativos e desenvolvimento desse julgamento. Nunca antes havia
acontecido um caso semelhante; nunca antes havia um súdito ousado amar a filha
de um rei. Em tempos posteriores, tais coisas se tornaram até bastante comuns;
porém, naquele momento, a situação era nova e surpreendente. As feras mais
selvagens e implacavelmente cruéis do reino foram avaliadas para que dentre
elas fosse selecionada aquela que estaria na arena. Todas as jovens donzelas do
reino foram cuidadosamente analisadas por um grupo de competentes juízes, para
que o jovem réu tivesse uma noiva adequada, no caso de ser esse o destino que o
acaso lhe reservava. É lógico que todo mundo conhecia o motivo pelo qual o
acusado seria julgado. Ele havia amado a princesa, e nem ele, ela ou qualquer
pessoa pensaria em negar o fato; porém o rei não permitiria que qualquer fato
desse tipo interferisse com os trabalhos do tribunal, que lhe davam tamanho
prazer e satisfação. Independente do destino do romance, o jovem seria
liquidado; e o rei demonstrava um prazer estético ao testemunhar o curso dos
eventos, que determinaria se o jovem tinha ou não errado ao ousar amar a
princesa.
O dia marcado chegou. Os súditos chegavam de todos os lugares do reino,
amontoando-se nas galerias da arena; impossibilitada de entrar, uma multidão se
apinhava do lado de fora, espremendo-se contra as grades e portões. O rei e sua
corte ocuparam seus lugares, exatamente na parede oposta às duas portas - as
duas fatídicas portas, tão terríveis em sua similaridade.Tudo estava pronto. O
sinal foi dado. Uma porta se abriu sob o camarote real, e o namorado da
princesa entrou na arena. Alto, belo, loiro, sua entrada foi saudada com um
audível murmúrio de admiração e ansiedade. Metade da audiência nem ao menos
sabia que um rapaz de tão bela aparência havia vivido entre eles. Não era de se
espantar que a princesa tivesse se apaixonado por ele! Que coisa horrível era,
para ele, estar ali! De acordo com o costume, o réu, ao entrar na arena,
voltou-se para reverenciar o rei; entretanto, seu olhar não se prendeu à
augusta figura do monarca. Seus olhos foram arrebatados pela princesa, sentada
à direita do pai. Não fosse pela porção primitiva de sua natureza, é provável
que a princesa nem estivesse ali; porém, sua alma intensa e fervorosa não
permitiria que se ausentasse numa ocasião na qual estava tão terrivelmente
interessada. Desde o momento em que havia sido decretado que seu amado teria a
sorte decidida na arena, a moça não conseguira pensar em outra coisa, noite e
dia, senão nesse grande evento e nos fatos a ele relacionados. Dotada de mais
poder, influência e força de caráter do que qualquer outra pessoa, ela
conseguiu o que ninguém conseguira antes - ela descobriu o segredo das portas.
Ela sabia em qual dos cubículos atrás das portas havia sido colocado o tigre e
em qual permanecia a futura noiva. Através das pesadas portas, recobertas
internamente por grossas cortinas, era impossível ouvir qualquer barulho;
nenhuma sugestão viria de dentro para a pessoa que se aproximasse para erguer o
trinco de uma delas; entretanto, o dinheiro e o poder do desejo de uma mulher
haviam revelado o segredo. Não apenas a donzela real sabia em que recinto
estaria a jovem prometida, pronta para surgir, toda corada e radiante, se sua
porta fosse aberta, como também sabia quem era essa jovem. Uma das mais belas e
adoráveis donzelas da corte fora a escolhida para ser a recompensa do rapaz
acusado, caso fosse considerado inocente do crime de desejar alguém tão
superior a ele. A princesa a odiava. Muitas vezes tinha visto, ou imaginava ter
visto, essa bela criatura lançando olhares de admiração para seu amado, e
acreditava que os olhares não somente eram percebidos como também retribuídos.
Várias vezes os vira conversando, ainda que por apenas um instante; entretanto,
muito pode ser dito em questão de segundos. Se o assunto era desimportante ou
não, como poderia ela saber? A garota era adorável, mas havia ousado levantar
os olhos para o amado da princesa; e, com toda a intensidade do sangue
selvagem, herdado de uma longa linhagem de ancestrais bárbaros, ela odiava a
mulher que enrubescia e tremia atrás daquela porta silenciosa.
Seu amado voltou-se na arena e olhou-a. Quando a viu, mais pálida e
desolada que qualquer outro ser em meio ao vasto oceano de faces ansiosas que a
rodeavam, ele percebeu, pelo poder de rápida percepção inerente a aqueles seres
cujas almas são uma só, que ela sabia qual porta escondia o tigre e qual
ocultava a mulher. Ele tinha certeza que ela descobriria. Ele compreendia sua
natureza; sua alma acreditava que a princesa jamais descansaria até descobrir o
segredo das portas, algo desconhecido por todos, até mesmo pelo próprio rei. A
única esperança para o jovem estava baseada na crença de que a princesa
conseguiria descobrir o mistério; e, no momento em que seus olhares se
cruzaram, ele soube que ela havia atingido seu intento, exatamente como a alma
do rapaz acreditava que ela o faria.
Nesse rápido e ansioso olhar, a pergunta "Qual?" foi feita. A
indagação era tão clara para a princesa como se o jovem a tivesse gritado do
meio da arena. O momento era preciso, não havia um instante a ser desperdiçado.
A pergunta foi feita num átimo de segundo; a resposta teria que ser produzida
em igual velocidade. Seu braço direito estava apoiado no parapeito almofadado à
sua frente. Ela ergueu a mão, e fez um leve e rápido movimento para a direita.
Ninguém, com exceção de seu amado, percebeu o discreto gesto. Todos os olhos
estavam fixos no homem no centro da arena. Ele voltou-se, e com passos firmes e
ligeiros atravessou o espaço vazio. No estádio repleto, cada coração perdeu o
compasso, cada respiração foi suspensa, cada olhar imobilizou-se, acompanhando
os movimentos do rapaz. Sem a menor hesitação, ele dirigiu-se à porta da
direita, e abriu-a.
* * * * *
Agora, o desfecho da história é o seguinte: Quem a porta ocultava: a
mulher ou o tigre?
Quanto mais refletimos sobre a questão, mais difícil nos parece a
resposta. Ela envolve um estudo do coração humano, o que nos leva pelos
tortuosos labirintos da paixão, dos quais a saída é sempre muito difícil.
Analise de maneira imparcial, caro leitor, não como se a decisão dependesse de
você, mas sim de uma princesa semibárbara de sangue quente, de sentimentos
primitivos, com a alma dividida entre as chamas do desespero e do ciúme. Ela o
perdera; porém, quem deveria ganhá-lo? Quantas vezes, nas horas de insônia ou
nos pesadelos, ela sofrera as agonias do horror e cobrira seus olhos em pânico
ao pensar que seu amado pudesse abrir a outra porta e encontrar a sua espera as
garras mortais do cruel tigre!
Entretanto, muitas vezes mais, ela o imaginara abrindo a outra porta!
Quantas vezes, nos dolorosos devaneios, ela rangera os dentes e arrancara os
cabelos ao imaginar os arroubos de felicidade do amado quando abrisse a porta
que ocultava a linda jovem! Como sua alma se consumia de angústia ao imaginá-lo
correndo ao encontro de tal mulher, com sua face corada de alegria e os olhos
brilhantes de triunfo; quando o via conduzir a jovem, seu prêmio, com o coração
transbordante de júbilo pela vida recuperada; quando ouvia os gritos de
contentamento da multidão e o alegre ressoar dos sinos; quando imaginava ver o
padre e seu festivo cortejo se aproximando do feliz casal para uni-los em
sagrado matrimônio; e quando os via trilhando juntos o caminho recoberto de
flores, acompanhados dos brados de felicidades da entusiasmada audiência - oh!
e em meio a tudo isso, o que lhe restaria, senão um inútil e perdido gemido de
desespero! Não seria melhor que ele morresse de uma vez, e fosse esperar por
ela nas abençoadas regiões de um paraíso semibárbaro? Mas, apesar de tudo isso,
a lembrança daquele tigre medonho, daquele rosnar feroz, daquele sangue! Sua
decisão fora manifestada num átimo de segundo, porém havia sido tomada após
dias e noites de angustiada deliberação. Ela sabia o que lhe seria perguntado,
ela havia decidido o que deveria responder e, sem a menor hesitação, movera sua
mão para o lado direito.
As diferentes hipóteses que podem ser levantadas tendo em vista a
decisão da princesa têm que ser consideradas cuidadosamente, sem leviandade nem
precipitação. Não me considero a pessoa mais capacitada para responder.
Portanto, deixo para você, leitor, esta pergunta: Quem saiu pela porta aberta:
a mulher ou o tigre?
STOCKTON, Frank. R. A Chosen Few Short Stories.
New York, Charles Scribner's Sons, 1895. Tradução e adaptação de Maria
Cristina Bessa Lima, maria.cristina.bessa@bol.com.br
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