A REVOLTA DOS PERSONAGENS
Conto de Darcy Brito
Publicado no Suplemento Cultural do Jornal À Tarde, em 5 de Setembro
de 1998
(atualizado pela autora com algumas correções ortográficas)
O livro tinha umas 50 laudas quando tudo foi jogado no lixo.
Era como se não não gostasse da história
que lia. Recostei-me na cadeira e refleti: Que turminha rebelde!
De repente... Hei, alguma coisa está se mexendo na lixeira!
Sou eu, Tomás!
O que você quer? Esse personagem foi para o lixo casado.
O que eu quero? Você me casa com a chata da Aparecida,
sabendo que essa não é a minha praia, depois me joga no lixo para eu permanecer
casado o resto da vida! Se não tinha imaginação não me criasse. Um tipo como eu
não merecia tamanho desenlace, ou melhor, enlace.
E por acaso eu estou menos infeliz querido? Obrigada a ficar
com este vestido de noiva sem ao menos ter começado a lua de mel. Você pelo
menos já havia tirado a gravata no carro.
E você a grinalda, Aparecida querida. Bem que estava
desconfiado do meu destino quando você entrou na história. E você
escritorazinha medíocre, não podia ter me arranjado uma noiva menos burra?
Claro que não. Eu queria um romance real. Todo homem gosta
de casar com mulher burra. Por que fugiria à regra?
Então por que diabos você me esculpiu com tantas qualidades?
Sabe o que eu acho?
Não. O que você acha?
Nem vou dizer, senão aí é que você não vai me tirar do lixo.
Então eu vou dizer porquê: Quando lhe aprontei, sua alma não se encaixava no corpo.
Alguma coisa estava sobrando ou faltando, você não correspondia à expectativa.
Isso que você está dizendo só confirma minhas suspeitas.
Que suspeitas?
Quem explica é Freud.
O que seu casamento tem a ver com Freud?
Tudo. Seu ego
regulador controlando seu id desejoso
e reprimido, e seu superego lhe acusando. Você tem desejos impróprios na vida
real e quis transferir para mim suas necessidades reprimidas, mas o seu
consciente a censurou. Autocensura, autora. Casou-me com a primeira Aparecida
que surgiu na sua cabeça. Nem, ao menos, me permitiu uma paixão. Egoísta.
Era só o que me faltava, um personagem me analisando. Ainda
bem que o joguei no lixo.
Está vendo? Teve medo de perder o controle. Você gosta de
personagens passivos, manipuladora.
Pobre de mim, Tomás. Estou aqui tentando acordar meu marido,
que tinha prometido me levar pro reggae.
Deve ser o marido dela, Bárbara. Ainda temos que dar graças
a Deus de estarmos na lixeira. Coisa vai ser quando formos para o lixão.
No aterro, nem quero pensar, Tomás.
Quem sabe? Algum catador de papel pode nos levar para vender
e a gente ir parar na mão de alguma escritora, ou escritor, mais criativo e ter
um final mais digno?
Já pensou? A gente na minissérie da Globo?
Você não pode se queixar, Silvio. Pelo menos você teve tempo
para dar o golpe do baú casando-se às presas com Lara. Está falando de barriga
cheia.
De barriga cheia estou eu, que casei grávida e não tive
tempo de parir.
Quem mandou precipitar-se Lara, agora agüente.
Temos que fazer alguma coisa.
Que forças temos nós, Lara, Jogados nesta cesta calorenta?
Tudo por sua causa, Tomás.
EEUU!
Sim senhor. Você ficava provocando, jogando charme pra todo
mundo.
Lara, ela queria me usar para as suas fantasias e teve medo.
Tentou me envolver com Bárbara, e, quando eu estava bastante imbuído, deu para
trás.
Verdade? Então Bárbara é ela?
Psiu! Ela pode escutar e vingar-se. Ou então continuar a história
sem você.
Duvido, Aparecida, que graça teria a história sem mim? Você
entrou de gaiata nesse enredo. Seu vestido de noiva mais parece papel de bombom
pisado depois da festa.
E você, nessa posição, sentado na cama, desabotoando o
sapato de perna pro ar, vai ficar todo entrevado.
A desgraçada poderia ter nos jogado no lixo sem contorcer e
amassar o papel.
Calem a boca! Senão toco fogo em vocês todos. Será que não
vou me desvencilhar de vocês?
A obra mais importante é a inacabada, querida autora; mesmo
que ninguém tome conhecimento, ela será eterna na sua cabeça.
Por favor, Tomás, cale a boca. Não ouviu ela dizer que vai
nos queimar?
Agora você está com medo, não é Eliúde . Mas quando estava
debaixo da caneta dela, sacaneava com todo mundo.
Caneta? Eu uso computador.
É mesmo, Tomás! Nem tinha pensado nisso.
O que vale dizer que ainda há salvação para a gente,
Aparecida.
Que salvação?
Aposto que ela nos salvou no computador, e, se isto aconteceu
esta lixeira aqui não tem valor nenhum.
Se ela nos deletou a morte será dupla.
Puxa, Bárbara, você continua pessimista e medrosa! Se
tivesse vindo quando lhe chamei pra balada, não estaria sacudindo seu marido.
Agora me deu ânimo, nem consigo acreditar que possa estar no
arquivo do computador.
Fale baixo Aparecida, se ela perceber já era.
Tomás tem razão. Resta saber quem vai investigar para nós.
Já sei, Bárbara, o personagem que fez papel de detetive.
Onde ele está no meio dessa bagunça?
Ele deve ter feito o serviço e foi-se embora. Eu mesma nem o
conheci.
Claro, Aparecida, você chegou no final, ou perto, sei lá.
Infelizmente, Tomás. Esses escritores nos desencavam não sei
de onde, fazem-nos de gato e sapato e, depois, nos colocam numa situação
dessas. Será que existe um órgão de defesa do personagem?
Se o detetive saiu da história vai poder nos ajudar lá de
fora.
Quem o contratou?
Foi Eliúde, Tomás.
Não senhora, Lara. Isso é coisa de marido que suspeita de
traição. Só sei que ele entrou e saiu misteriosamente.
Gente, não é hora de guardar segredos. Estamos na iminência
de virar um monte de lixo aterrado, misturados com resto de comida, lata velha,
titica e tudo mais.
Cruzes, Tomás!
Quem o contratou?
Eu não fui.
Então foi o marido de Bárbara, e ele está dormindo.
Por que o César iria contratá-lo, Aparecida?
Ah! Você deve saber muito bem. Quando aqui cheguei, Bárbara, você e o
Tomás estavam na boca do povo.
Ele fez-me umas perguntinhas imbecis e...foi só.
Então, Bárbara, quando foi isso?
Logo depois que ele conversou com você, Tomás.
Ai, ai, ai! Vocês dois estavam na mira de alguém.
Não brinque Eliúde, que o tempo está passando.
Hei! Estava passando por aqui e pressenti que vocês estavam
precisando de mim.
Quem é você?
O detetive.
Louvado seja Deus. Como você adivinhou que estávamos
precisando de você?
Sabia que a autora iria desistir da história, então caí fora.
Ela jamais me daria subsídios para concluir meu trabalho. Seria como
denunciar-se.
Eu não disse que tinha Freud no meio desse enredo?
Quem está falando?
Tomás, o que se casou com Aparecida.
Pois é, Tomás, ela o casou para preservar-se e você me deu
aquela resposta conveniente a ela.Quando César dormiu, ela jogou todo mundo no
lixo. Como poderei ajudá-los?
Ela escreveu a história no computador, pode ser que estejamos
no arquivo.
É bem capaz. Ela não estava bem certa do que queria. Como
fui dispensado estou livre para agir. A sorte de vocês é que eu não sou produto
apenas da imaginação dela.
Como assim?
Ela trouxe um investigador da vida real para promovê-lo
através do seu livro. Mas não posso lhes dar esperanças. Farei uma visitinha de
agradecimento a ela, mesmo sendo dispensado dos meus serviços antes da hora.
Perfeito!
Quem é essa?
Sou Aparecida. Não vejo a hora de sair dessa posição.
E eu?! Sacudindo César sem parar.
Ninguém está pior que eu, Bárbara, com este enjôo de
gravidez dos primeiros meses.
Se ao menos eu já tivesse tirado o sapato de salto alto!
Ainda bem que eu já tinha comprado meu som potente. Vocês
estão desconfortáveis e eu estou deitado ouvindo música.
Mas ninguém está agüentando, Silvio, essa faixa repetitiva.
César é que está bem, dormindo.
E Eliúde se refrescando no banho.
Vai se resfriar se o detetive não andar ligeiro.
Uai, uai, estão nos levando! Soocorro.
Será que já estamos no lixão, Aparecida?
Creio que estamos do lado de fora para a coleta geral,
Tomás. Nem ouço mais o chuveiro de Eliúde.
Pronto, chegou o caminhão. É o fim.
Mas pode ser o começo, Bárbara. As folhas estão contorcidas
e amassadas, mas não separadas. Se algum badameiro, tirado a intelectual, nos
encontra, quem sabe dará um final feliz?
E se tivermos lá, no arquivo da indecisa?
O detetive poderá convencê-la a mudar o rumo das coisas,
Bárbara.
Estão nos jogando no caminhão. Vamos rezar para o Senhor do
Bonfim.
Eu sou hereje.
Custa fazer uma exceção, Bárbara?
Nada vai mudar a história, a não ser que alguém se interesse
por nós, lembra? Fui jogada no lixo como herege e assim devo permanecer.
E se a história tiver dois finais?
COOOMO?
Ei, Sílvio, pensei que estivesse surdo!
Está esquecido, Tomás, que fui mímico antes do golpe do baú?
Leio nos lábios.
Ah! Então você confessa, seu falso, mentiroso.
Claro, Lara, quem iria lhe aturar sem um dote?
Deixem o Tomás falaaar!
Estou de água até o nariz, emborcaram de vez o banheiro.
Suponhamos que alguém nos encontre, sem saber do arquivo, e
nos dê um final diferente do da autora.
Eu quero ficar no final dado pelo badameiro intelectual.
Bárbara, não pense que vai cada um pro seu lado. Estamos no
mesmo barco.
No mesmo lixo, você quer dizer.
Vocês estão discutindo como se tivesse autonomia.
É verdade, Lara, você foi fundo. Pensei que tivesse vomitado
todo o seu cérebro.
Sabe, Bárbara, Tomás é tão pretensioso que pensa que é real.
Chegamos. Se o detetive for inteligente vai bater aqui, isto
se convenceu a autora.
Epa, olha ele lá Tomás! Paletó xadrez azul, gravata
vermelha, só pode ser ele. Será que vai nos reconhecer no meio de tanto lixo?
Nossa, tem um papel mal cheiroso bem aqui, justo eu que
estou enjoando.
O detetive parece aflito. Pelo jeito, ela nos deletou.
Acho que ele, agora,
pegou numa titica. Não adianta tanta campanha para separar o lixo reciclável. A
própria autora é um exemplo deixa a cargo da criada.
Ela está pouco se lixando pro lixo, Tomás.
Gostei do trocadilho, Aparecida. A propósito, seu vestido
está lindo. De papel de bombom amassado, virou fralda de neném não-descartável.
Nem posso acenar para o detetive. Ela me colocou segurando
esta cauda de propósito. Eu seria a única numa posição visível. Enquanto você,
Tomás, ninguém sabe onde está o começo nem o fim, na posição em que se
encontra.
Nossa! Lá vem os sem teto.
E os sem terra, também, Lara?
Não. Os sem terra estão na esplanada ou invadindo o Incra.
Quem disse que badameiro é sem teto, Lara?
Então é sem chão.
Chão é o que eles mais têm. Nós é que somos uns sem..Sem
autor, sem destino, sem qualquer coisa.
O detetive vai nos resgatar? Seria bom se desse uma ventania
e nossas folhas batesse no narigão dele.
Onde estarão as folhas? Tenho que dizer que a autora está
numa tarde de autógrafos. Se a empregada tivesse me deixado entrar, teria
olhado no computador. Mas nem sei o nome do arquivo! Ei, badameiros, se vocês
encontrarem um maço de folhas brancas, quer dizer, com uns escritos, entreguem-me
oK?
O senhor quer dizer, me vendam. Não sabe que vivemos disso?
Sei, mas é que elas foram para o lixo por engano.
E daí?
Daí que são minhas.
Ai,ai, ui!, estão nos distorcendo.
Ótimo, já não estou mais de pernas pro ar.
Sim, Tomás, mas em compensação viraram a folha para baixo.
Não estou vendo nada.
Isso é o mínimo, Aparecida, a tendência é nos lerem de
frente. O que é isso? Acho que estamos no sovaco de algum badameiro.
Detetivezinho de meia tigela, por isso foi despedido; se
depender dele morrerei afogada no banheiro.
Ei, o que você tem aí debaixo do braço?
Uma apostila. Vou dar pro meu irmão que vai fazer
vestibular.
Deixe ver.
Vem cá moço, parecem seus papéis.
Acho que sim.
Como, acho? Então o senhor não é dono de nada.
Ainda não os vi direito.
Só entrego por dez reais.
Isso é exploração.
Então o que está escrito aí?
Trata-se de um romance inacabado e os personagens estão numa
situação difícil.
O senhor é o autor?
Sou um personagem que saiu da estória antes dos papéis serem
jogados no lixo, um detetive...
Que nem aquele dos filmes. Você trabalha em televisão?
Por enquanto não. Mas quem sabe? Se o livro ficar pronto...
Se o senhor arranjar um papel pra mim não cobro nada pelas
folhas.
Está certo.
Amigos, encontrarei
um final feliz para vocês.
Oba! Não vejo a hora de começar a minha lua-de-mel.
Lua-de-mel? Final
feliz pra mim é divórcio, Aparecidinha!
E César, coitado, nem pode dar opinião. Se o novo autor
achar que foi mordido por uma mosca tsé-tsé, nem sei o que fazer.
Bárbara, talvez seja melhor ele continuar dormindo do que
descobrir certas coisas.
Que coisas, Aparecida? Você veio jogar farofa no meu
ventilador.
Vou continuar jogando, Tomazinho.
Egoístas! Existem outros personagens em situações difíceis.
Lara enjoando, Sílvio quase surdo e eu afogada nesse banheiro.
Eliúde tem razão. Não é hora de desavenças, Tomás.
Concordo, Bárbara. Que fresquinho! Acho que o detetive está
se abanando com o calhamaço.
Estou sentindo um cheiro de mofo. Onde estamos, Tomás?
Deve ser a academia de letras, Bárbara, pelo barulho das
xícaras e croc das torradas é hora do
chá.
Essa velharia nem sabe usar o computador.
Pior, Bárbara, é que são moralistas.
Vocês estão falando bobagem. Tem o João Ubaldo. Mas eu
queria mesmo era cair nas mãos de um Jorge Amado da vida. Estou a caminho da
lua de mel.
Senhor do Bonfim não há de permitir tamanho castigo para
mim!
Silêncio, gente! Estou sondando um bom escritor. Ei, senhor!
Quem é você?
Um detetive. Tenho aqui um romance inacabado e os
personagens estão em situações desconfortáveis. Fiz parte da estória, antes da
autora jogar tudo no lixo, devido à autocensura.
Será que botaram alguma coisa no meu chá? Devo estar
delirando. Personagem ao vivo e nem ao menos foi criado por mim?
Sou real, a autora me levou para a sua ficção. Mas não a
encontro para dar continuação à história. Pode ajudar?
E quem me garante que o romance é inacabado?
Leia. Tudo ficou sem sentido.
Mas isso foi escrito no computador e, a essa altura, ela
pode ter retomado a estória.
Não queremos que o final seja dado por ela.
Por quê?
Porque para se autopunir ela casou o pobre do Tomás com uma
personagem que não tem nada a ver com ele. Quando percebeu a revolta dele, que
na verdade é a dela, jogou tudo no lixo e viajou para uma tarde de autógrafos.
Sei de quem se trata. Se muito andou está na Feira Internacional do Livro.
Cretina! E deixou os personagens numa situação de dar pena.
Isso acontece todos os dias na vida de escritores. Se todos
os rascunhos fossem encontrados, não haveria mais árvores para o fabrico de papéis.
Já que conhece os personagens, nada mais justo que do que você mesmo dá um
final a eles.
Não, tem que ser uma pessoa neutra. Eles tentariam me
manipular e, além disso, quem iria ler um livro de um ilustre desconhecido.
Quando escrevi o meu primeiro livro também era desconhecido.
Mas o senhor nasceu com o dom da escrita.
Hoje, basta ter amigos na mídia.
Prefiro apostar no talento.
Fico muito lisonjeado. Mas suponhamos que eu dê um final e
ela outro. E que ela resolva publicar o livro. Já pensou na minha reputação?
Não vou me arriscar, amigo. Ela vai dizer que estive na casa dela remexendo o
lixo da cesta. Será minha palavra contra a dela.
Mas o senhor tem mais prestígio.
Eu, realmente, estive na casa dela e ela me falou que
acabara de jogar fora uns escritos que não estavam expressando bem seus
pensamentos. Que nem Clarice Lispector, que destruiu muitos originais, segundo
contam. Mas prometo pensar no assunto.
Será que Eliúde vai agüentar mais tempo no banheiro? E Lara
vomitando? Castigo maior que o de Tomás não pode haver.
Calma, detetive. Personagem aguenta tudo. Nós é que não
aguentamos personagens insatisfeitos.
Fim