O MENINO QUE NÃO ABRAÇAVA e o Robô Toninho
Mini Conto de Darcy Brito
Alguns dias se passaram antes que Ênio tomasse
coragem para seguir em frente com seu projeto. O que tinha acontecido com ele o
deixou tão abalado que até mesmo o seu mais ambicioso sonho ficou como se
congelado em frio máximo. Mas, agora, não dava para adiar. Aqueceu a vontade,
respirando fundo, oxigenando e expirando seu gás maléfico, correu alguns
quilômetros, suou, e mergulhou no mar, deixando que a água levasse o sal da sua
tristeza. Tinha que impulsionar o seu projeto.
Ao chegar ao seu ambiente de trabalho duvidou da
sua capacidade: eu fiz tudo isso mesmo? Questionou-se. Não me lembro desse
detalhe. Teve receio de estar ficando mentalmente perturbado. Diante dele
estava um objeto estranho e ficou sem saber por onde recomeçar. Sentiu-se um
intruso, se apoderando de algo alheio. Do lado de fora de sua oficina, ou
laboratório, como costumava chamar, o sol brilhava e energizava sua janela no
terceiro andar de um prédio antigo, clareando todo o ambiente. Os automóveis
buzinando e congestionando a rua, indiferente à situação lá de dentro, atraiu a
atenção de Ênio, que por algum momento achou que estava em outro lugar. Baixou
a persiana e ligou o ar condicionado. Tornou a olhar pelo cantinho da vidraça e
reconheceu uma loja de peças em frente. Sentiu-se de novo em seu
ambiente. Voltou-se para sua obra, quase pronta só faltando poucos detalhes, e
outra vez não lembrava de ter adiantado tanto.
Não saía de sua cabeça a recente morte daquele
amiguinho de infância, hoje, adulto, que vivia lhe pedindo um abraço que ele
nunca o deu. Na época não sabia o porquê da negação do abraço e muito menos da
insistência do amigo, que sofria com isso. Na verdade Enio não abraçava e
nem gosta de ser abraçado. Foi diagnosticado com Síndrome de Asperger, um tipo
brando de autismo, quando criança, cujos sintomas desapareceram na fase de
adolescente para adulta. Com o tempo os dois deixaram de se ver, mas ele nunca
esqueceu o amiguinho de infância. A notícia da morte do amigo veio através de
um ex-colega mais ligado ao falecido.
Bem, tudo que queria agora era terminar seu
projeto. Afinal foram anos de dedicação para chegar onde chegou. Fez curso de
robótica no Japão com pós-graduação e doutorado e pós doutorado. Este robô teria
que ser o mais incrível de todos que já havia projetado. Com aparência humana,
voz semelhante e movimento dos braços que lembrasse leveza. Os comandos
deveriam obedecer ao que ele já havia programado. Mas ainda faltava o rosto.
Que rosto daria? Testou os comandos, tudo em ordem. De repente ouviu o Robô
pedir um abraço, movimentando os braços para frente. Gelou com o susto. Não,
não dei essa ordem. Desligou tudo, e percebeu que os braços do robô ficaram na
posição do pedido. “Me dê uma abraço”! Teria ele dado esse comando ao robô?
Acho que é impressão minha. Fechou a oficina,voltou para casa onde morava só, e
pois-se a lembrar: “Você tem coração? O homem de lata, da estória do Mágico de
Oz, tem”- e quando pedia o abraço perguntava: para quê servem os braços senão
para o abraço? E declamava o poema “Braços que não abraçam não são braços, são
traços". Foi então que resolveu bisbilhotar seus álbuns de fotos e lá
estava seu amiguinho, na foto da turma, bem na frente, sorrindo. Lembrou-se que
seu robô ainda não tinha rosto. Como seria o rosto do amiguinho, agora adulto,
que não via desde a adolescência? E pensou: Com certeza eu estava pensando nele
quando ouvi o robô pedir o abraço, que veio com o comando dos braços. Seria uma
grande homenagem por o rosto do amiguinho no robô – continuou pensando. Mas
isso deveria ser feito por alguém que soubesse esculpir um rosto muito parecido
com o real. E eu não tenho esse dom.
Ênio voltou ao seu trabalho para testar todos os
comandos. Este Robô deveria fazer parte de um projeto industrial que ele estava
concorrendo. A função deveria ser bastante abrangente, pois iria substituir um
número considerável de profissionais. Coisa desta era em que vivemos, a chamada
Quarta Revolução. E este Robô humanóide deveria ter um rosto.
Toda a história vivida por Enio estava no seu
subconsciente. Pesava o fato de o amigo ter morrido sem que ele tenha dado um
abraço. Voltou para seu projeto e imaginou um rosto de criança, o rosto do
coleguinha, e decidiu que iria tocar em frente. Retirou a foto do grupo
que estava guardada no seu porta retrato, circulou em volta do rostinho do
colega com um marcador de texto, iria em busca de um profissional que lida com
reprodução em 3D.
O humanóide deveria obedecer a certos comandos
de movimento físico com alguns graus de liberdade, tipo levantar o braço, virar
o pescoço, emitir voz, etc. e ainda um software de reconhecimento facial.
Faltava um rosto. Enio foi em busca desse rosto de criança, aquela criança da
sua infância, o amigo.
Enquanto pesquisava alguém que pudesse atender
aos seus anseios, o de esculpir com perfeição o rosto do amigo que teve seu
abraço negado por toda uma vida, tentou recordar os tempos de escola.
O amiguinho de Ênio chamava-se Antonino, mas era
conhecido pelo apelido de Toninho. Negro e gordinho estava sempre contando
histórias que lia nos livrinhos e revistas. Antes de começar a contar as
historinhas avisava que queria um abraço como pagamento. Todos atendiam a essa
exigência menos Ênio que saía de perto. Mas Toninho dizia que ele podia ficar
junto aos outros sentadinhos no horário combinado, às vezes no recreio, outras
antes de começar as aulas.
A idade deles variava entre 9 e 10 anos. Ênio
tinha 10, mas era o maiorzinho de todos, com pele clara, cabelos e olhos
acastanhados. Essa Escola tinha um diferencial, não fazia discriminação. Ricos,
pobres ou com alguma deficiência que pudesse ser administrada eram bem
recebidos.
Após refletir bem a respeito do seu humanóide, e
a quem iria encomendar o rosto do amiguinho, lembrou que o coleguinha era
negro. Então o seu robô tinha que ser negro, pensou.
Não só o rosto, mas também o corpo que iria
representar toda a sua aparência externa. Pesquisou as diversas funções que os
robôs estavam desempenhando no mundo e não viu nenhum que se adaptasse ao
seu. Na verdade nenhum tinha aparência negra, fosse qual fosse a função. Ênio
ainda não sabia exatamente que função lhe daria ou qual interessaria mais aos
seus julgadores. Sendo assim resolveu que iria dar uma função que mais
traduzisse seu coleguinha. Procurou saber do amigo, que lhe dera a noticia do
falecimento, e ficou sabendo que ele era enfermeiro de um hospital beneficente
infantil, sendo que seu trabalho, além dos cuidados com a saúde física das
crianças, era o de contar histórias para aqueles que tinham doenças mais graves
como câncer, hepatite e outras que exigissem uma internação maior.
Resolveu que iria dar ao seu robô a função de
enfermeiro e contador de histórias. Pronto. Que melhor função poderia ser mais
fiel ao seu coleguinha?
Saiu em busca do profissional que iria esculpir
o rosto do amiguinho.
Sim, mas seu robô seria um garoto? Ou ele iria
em busca de uma foto de seu amigo já adulto?
Alguns dias se passaram desde a hora em que
soube da morte do amigo, vitimado por um infarto fulminante. Na dúvida se iria
ou não construir um robô adulto, que ele não teve nenhuma aproximação, resolveu
que iria dar a seu invento um formato de criança negra, com vários comandos,
inclusive falas que iriam contar diversas historinhas infantis às crianças em
hospitais ou outros estabelecimentos. Mas, as regras impostas no concurso
exigiam altura e expressão de rosto de um adulto normal e não falava em formato
do corpo nem em cor. O que fazer? Pensou. Rosto de adulto em corpo com formato
de criança lembra um anão, coisa que Toninho não era. Até poderia procurar uma
foto de seu amiguinho já adulto, mas não era esse o sentimento que queria
demonstrar. Então arriscou ignorar as regras.
Todo o esqueleto já estava pronto e alguns
comandos também. Faltava a voz que deveria ser, também, de uma criança. Na
Agência onde trabalhava ele fazia pesquisas para aprimorar os comandos de voz.
No caso do Robô Toninho ele pretendia que tivesse ao menos comandos que
contasse algumas historinhas arquivadas e dessem respostas às perguntas das
crianças e andasse.
O robô humanóide muitas vezes pode não ter
braços e pernas, mas tem que ter um rosto que aproxime emocionalmente “olho no
olho”. Toninho teria que ter tudo, inclusive seu rosto de criança. Restava
saber se seu projeto seria aceito. Antes de continuar procurou saber da empresa
contratante a possibilidade de seu projeto ser aceito. Ficou sabendo que o
rosto não poderia ter uma identidade porque isto implicaria em pedir
autorização à família do amigo falecido. Foi sugerido a ele criar um formato de
um boneco que poderia ser negro e com o tamanho de um adolescente. Ênio
perguntou se no caso de autorização da família ele teria aprovado seu projeto.
Mas não recebeu uma resposta imediata, o coordenador do projeto argumentou
haver uma possível reação emocional vinda da família dos envolvidos, e citou o
exemplo dos transplantes de coração no qual é vedado a identidade de
ambos, de acordo com a ética médica. Mas o nome, Toninho, seria aprovado.
Independente de ser aceito ou não Ênio continuou
com seu projeto. Para sua alegria seu projeto foi aceito, inclusive copiado por
outro países.
Toninho Humanóide hoje vive de alegrar crianças
hospitalizadas que necessitam de incentivos para viver.
E assim Toninho ressuscitou.
----------
Bem, a história não acabou. Você pode criar um
episódio onde o personagem Toninho alegrou uma criança. A imaginação agora é
sua.
Nenhum comentário:
Postar um comentário