Lembranças de um Baile de 15 anos.
Mini Conto
Darcy Brito
Deinha, recostada na rede da varanda, rememorava um tempo muito gostoso da sua juventude:
Era década de 50. Anete, sua prima, havia se arrumado como uma princesa no dia dos seus quinze anos e nada iria tirar a sua alegria. Seu vestido branco de organza bordada e saia volante era de dar inveja às amiguinhas do seu bairro. Ela se aprontara mais cedo para buscar a tiara emprestada na casa de Deinha, aproveitando para irem juntas à festa. O baile seria no grande salão do casarão do velho professor Isidoro, que ensaiava as valsas com as meninas e meninos do bairro, nas suas aulas de teatro e dança.
A rua onde morava ainda não tinha asfalto e quando chovia formava umas poças d’água enlameadas. Uma rua muito comprida, contornando a igreja e retornando ao mesmo ponto inicial. Apesar da advertência de sua mãe para ter cuidado com a lama, Arlete não pode escapar da “tragédia” que lhe aguardava. Ao passar por uns garotos, que ela costumava esnobar, viu de repente seu lindo vestido todo lambuzado.
- Moleques despeitados – gritava Anete, chorando na casa da prima Deinha – Eles atiraram uma pedra grande na poça de lama bem na hora que eu ia passando!
- Oh, Deus! Lamentava a prima. E agora?
- Temos que dar um jeito, - dizia enxugando as lágrimas. Vamos lavar antes que minha mãe veja. Organza é fácil de secar no ferro de engomar.
- Mas não tem brasa para esquentar o ferro – falava a prima, aflita, olhando para a preta Zú, que torcia a boca dizendo: - Nem mi ói. Essa lama só sai no môio.
- Vou chamar minha avó, Anete. Ela sempre dá um jeitinho.
- Vem cá minha filha – disse a avó preocupada. Abra a roda do vestido aqui em cima da mesa que eu vou passar um pano limpo e molhado. Ainda bem que foi só a saia, mas não garanto nada.
- Se eu soubesse que isso iria acontecer não teria vindo, mas não ouvi minha mãe!
- Fique calma prima, vou ao sótão buscar a tiara para lhe emprestar, você vai ficar linda – disse Deinha.
- Nossa, minha filha, foi pior a emenda que o soneto. Ficou amarelo – disse a avó aflita.
- Amarelo e molhado, vou vestir o outro que minha madrinha me deu de presente. É bonito, apesar de vermelho, e eu queria branco. - Vou com você prima e xingo aqueles moleques. Eles estão com raiva porque não foram convidados. Pixotes metidos a homens.
- Mas, tenha cuidado, Deinha, eles podem sujar seu vestido e você não tem outro – disse a avó.
A festa da prima debutante teve até orquestra improvisada pelo professor Isidoro. Todas as moças com seus pares. Menos Deinha. É que, ao tomar as dores da prima ela xingou os meninos da poça, de ”moleques despeitados”, sem reparar que no meio estava o seu par na valsa, o qual muito escabreado, e com raiva, decidiu que não iria ao baile.
Enquanto as meninas ajeitavam as anáguas para que ficassem bem arrumadas, Deinha, sem entender a ausência, olhava pela janela, e nada do seu par. Nesse momento, um rapaz de outro bairro, estava tentando penetrar na festa e pulou o muro. Ela o viu, mas, não o denunciou; em vez disso se dirigiu a ele fingindo conhecê-lo para que o tio não criasse problema e, muito afetada, o convidou para a valsa. Muitas fotos foram tiradas, inclusive a de Deinha com o penetra.
O que o destino reservou para Deinha contarei a diante.
Durante muito tempo aquelas poças de lama compôs o cenário da Rua do Amparo. Quando secas, a poeira fazia um redemoinho causado pelo vento. O pai de Deinha, que gostava de usar terno branco de linho vivia reclamando da sujeira que acumulava na bainha de suas calças. A situação melhorou um pouco quando surgiu a Marinete, uma condução parecida com um lotação. Havia o bonde, mas este só viajava até o largo, antes da baixada, onde moravam as primas. O aparecimento da marinete foi uma festa. A garotada saía atrás correndo tentando alcançá-la e pongando no pára-choque traseiro. O asfalto só chegou algum tempo depois.
Moravam nessa rua pessoas das mais diferentes classes sociais. Do engenheiro ao pedreiro, do advogado ao escrivão; médico, professor, sapateiro, costureira, alfaiate, padeiro, comerciantes, guarda de polícia, cartomantes, espíritas. Destacava-se ali uma personagem que marcou época na rua, uma negona alegre conhecida como Fiúta. Ninguém nunca soube se era esse o seu verdadeiro nome, mas todos a conheciam porque era ela quem dava as notícias mais frescas num tempo sem televisão. Muito risonha, apesar de lhe faltarem dois dentes na parte superior da arcada dentária. O vestido mais curto na frente, devido à barriga, lhe dava um aspecto de eternamente grávida.
Foi Fiúta quem espalhou uma notícia que deixou Anete muito aborrecida. Sem nenhuma certeza, falou para os quatro cantos que a menina ia casar “a pulso”, ou seja, o namorado a tirou de casa, ou, fez mal à pobrezinha, desonrou-a. Eram os termos usados na época para definir uma moça que não era mais virgem. Chegou até ao absurdo de falar que a mãe a encontrou numa poça de sangue. Se fora verdade ou mentira não deu para saber, mas o fato é que Anete casou-se de uma hora para outra com apenas dezessete anos. As amigas se esquivavam de sua companhia por ordem das mães que a achavam uma má influência. O mais incrível é que foi justamente o penetra da festa de seus quinze anos o responsável ou irresponsável pelo episódio nupcial. Após dançar a valsa com a prima Deinha, ele foi convidado, pelo pai da aniversariante, a dançar com dona da festa. O penetra tinha uma cara de bom moço, sabia disfarçar e seduzir as mocinhas casadoiras. Deinha estava arreada aos “quatro pneus” por ele, segundo ela havia confessado para a prima Anete. Esta por sua vez, para não decepcionar a prima, escondeu sua paixão pelo penetra. É ai que começa o triângulo amoroso, onde a base não era nada sólida. Ele namorava as duas ao mesmo tempo sem que a sonhadora Deinha percebesse. Anete, mais arisca, o levou para a sua casa a fim de mostrar-lhe o novo LP do argentino Gregório Barrios cantando boleros, numa tarde em que sua mãe foi comprar tecidos nas lojas Duas Américas, na Rua Chile. Esse detalhe foi relatado também por Fiúta, que costumava engomar e passar roupa para a mãe de Anete. Deinha era um ano mais nova que a prima Anete e estudava em turno oposto da outra, o que facilitava a infidelidade do penetra que ia buscar uma ao meio dia e a outra às cinco e trinta. Ele estudava eletro-mecânica, na escola de segundo grau, no bairro de Nazaré, onde os rapazes eram tidos como inteligentes e também ousados, porque mexiam com todas as meninas que passavam na porta da escola.
Quando a notícia correu de boca em boca, Deinha foi a última a saber e tentou cortar os pulsos na frente do namorado que a impediu do ato e jurou ter sido fofoca, mas Deinha nem quis apurar nada, terminou o namoro e não foi ao casamento da prima Anete.
Depois de alguns anos, revendo as fotos de seus quinze anos, Anete teve vontade de rever a prima, que já estava casada com um ex -colega do penetra. As duas se encontraram sem ressentimentos, mas aí aconteceu o inesperado, ou, quem sabe, o esperado. A paixão antiga, que é como navio submerso, provocou borbulhas que escaparam até à superfície. Como disfarce, o penetra tentou relembrar o dia do baile em que ele pulou o muro cheio de medo que houvesse cachorro solto. Ali também Fiúta teve participação. Segundo ele mesmo contou, Fiúta, que ele descrevia como uma negona simpática e estava em todas as festas ajudando em alguma coisa, ficou olhando para que ninguém notasse e deu o sinal positivo para que ele pulasse o muro.
Voltando às borbulhas de amor, que na época não pertencia ao cantor Raimundo Fagner, houve arrepios por todos os sentidos dos ex-apaixonados. Daí em diante ninguém segurava os dois. Segundo as más línguas, Deinha havia segredado a uma amiga que iria revidar, mas essa fofoca tinha aroma de Fiúta. Contam que os dois se encontravam nas matinês do Cine Guarany no meio da semana. A verdade é que o penetra estava sempre visitando o ex-colega com ou sem Anete. Elas já não moravam tão próximas como na rua do Amparo. Deinha estava em Brotas e Anete no Campo da Pólvora, numa época em que não havia engarrafamentos de carros e era comum a visitação aos amigos.
As mães das duas continuavam morando no mesmo lugar e as primas se encontravam nos aniversários, das tias e dos pais, que eram sempre festejados com muita alegria. Um dia, Anete observando os dois, Deinha, e o marido penetra, escolhendo um LP para colocar na radiola, percebeu um certo clima, quando a música começou a tocar, era o mesmo cantor dos tempos de namoro, Gregório Barrios cantando El dia que me Quieras. Gato do que usa cuida, pensou ela, que não era nada boba.
- Gostei da escolha, disse Anete segurando o marido pelo braço.
- A radiola estava apresentando um defeito, não repetia o disco quando acionada, então, eu chamei o técnico e ele pilheriou perguntando para que repetir um disco tão grande - falou Deinha meio sem graça.
- Boa pergunta- falou Anete.
- É que não tenho, ainda, muitos discos, a radiola é nova.
- E muito bonita- falou desconfiado o marido de Anete - a combinação das cores marfim com vinho, na portinha, me agrada muito.
- E o que mais lhe agrada querido? Perguntou Anete olhando para a prima.
- Veremos depois do jantar, completou Deinha puxando os dois para a mesa que já estava servida.
Essas lembranças, que Deinha tinha do tempo em que morou na Rua do Amparo, eram freqüentes, gostava também de relembrar passagens engraçadas que acontecia no seu antigo bairro.
Numa ocasião, sem querer, Deinha deixou escapar o apelido de um morador que era conhecido como o “Feião”, sem que o próprio soubesse da alcunha. Feião prestava pequenos serviços e costumava encerar o chão com Cera Parquetina vermelha e passar escovão no assoalho da casa da mãe dela. Ao cumprimentá-lo, na passagem, ela o saudou com um “Olá Feião”!
- Olá, menina, você me acha feio? Perguntou ajeitando o cabelo.
- Não, por quê? Falou Deinha sem jeito.
- Você disse feião.
- Eu? Tentou consertar e disse: falei filhão.
- Mas eu tenho idade de ser seu pai, menina.
Na verdade a casa de Feião era conhecida como a casa dos feiões, por serem eles muito feios, de tez áspera e avermelhada, queixo proeminente e cabelo ralo e crespo. As mulheres tinham busto bem grande e nádegas batida como tábua, chulada como diziam. Mas apelidos como esses surgiam não se sabe de onde. Tinha também o Orelhinha, com a orelha costurada, dizem que de nascença. Esse sabia do apelido e até se identificava como tal, quando mandava cobrar algo: “Diga que foi Orelhinha quem mandou por conta do serviço”. Outro curioso era o Bocade Caçapa, baixinho, boca grande com um papo abaixo do queixo, esmurrava quem o chamasse pelo apelido, por isso estava sempre brigando e fazendo queixas aos pais dos meninos provocadores. Um dia, dois marmanjões tentaram botar uma bola de bilhar na boca do coitado e fizeram uma aposta: se a bola coubesse, ele, o Boca, ganharia dez mil cruzeiros, hoje não se sabe o valor desse dinheiro corrigido em reais. Claro que a bola não coube na boca coitado.
Muito querido era o Cotó. Com seu bracinho cotó ele participava das quermesses de igrejas, queima de Judas, quebra-pote, mordida da maçã amanteigada, e sempre ganhando as competições.
Bem, mas Deinha nunca esquecera o penetra. No episódio da radiola, depois do jantar, Anete puxou o assunto do baile e o vestido sujo de lama. O penetra por sua vez falou do medo que teve ao pular o muro enquanto Fiúta, que Deus a tenha, olhava ao redor. “Que bom que Deinha me viu e fez de conta que me conhecia”, falou desconfiado olhando para Anete que sempre teve ciúmes da prima.
O cenário da Rua do Amparo e o cheiro do betume, do primeiro asfalto, sempre levam Deinha a devaneios. Quando ela pisou pela primeira vez no asfalto, ainda meio mole, teve o solado de seu sapatinho de verniz, que na época dizia-se de “oleado”, preso no chão. O sapato ficou perdido, não na lembrança, que costuma habitar seus sonhos sempre que ela quer refugiar-se em algum lugar do passado.
Todas essas lembranças aqui contadas vieram à tona porque Deinha tinha lido no obituário do jornal a morte do Penetra.
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