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quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

EPÍLOGO: OS ESCRITORES E A CRÍTICA - por Frankilin Jorge


Escritor Frankilin Jorge
EPÍLOGO: OS ESCRITORES E A CRÍTICA

Por Frankilin Jorge - Escritor e Jornalista




Ainda muito moço, em visita a um tio avô humanista que vivia enfurnado em sua vasta e bem escolhida biblioteca, descobri em Marcel Proust uma nova concepção de critica, mais concisa, mais apaixonada, mais parcial, entendida sob um ponto de vista mais amplo e, de tal forma realizada, representaria ela mesma uma criação literária autônoma e digna da obra que a inspirara.

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Borges pôs em prática essa concepção estética proustiana, especialmente em seus prefácios que, a rigor, constituem pequenos e originais ensaios, razão pela qual têm sido publicados como obra de criação autônoma, tão digna quanto qualquer outra página que, por acaso, tenha escrito no curso de sua longa e laboriosa existência, toda ela voltada para a magia ilusionista da literatura.

Autor de uma cultura enciclopédica, pos-se Proust ao serviço da criação de uma obra polifônica que avulta, em sua literariedade, como um dos mais originais e perenes monumentos construídos pelo homem.

Observou Proust que a crítica constitui um gênero não-secundário, mas autônomo e digno como qualquer outro que provém do engenho humano que transforma a ideia – mais que palavras -- em realidade concreta.

Muito antes de escrever o roman-fleuve que o consagraria, Proust já se expressava como um crítico, ao propor, através de pastiches deliciosos que se farão presentes em sua obra futura, como que referendando o leitor em tudo exemplar – nutrido do que mamou no humanismo literário -- que foi por toda a vida. Prova-o e comprova-o as páginas ainda incipientes de seu livro de estréia, “Os prazeres e os dias”, na qual assoma, de maneira embrionária, algumas de suas obsessões que somente alcançariam a expressão definitiva em sua busca do tempo perdido.

Ainda muito jovem e quando ninguém suspeitava do gigantesco empreendimento que resultaria na elaboração dos sete volumes que compõem a polifonia proustiana, deu-nos – por assim dizer avant la lettre -- uma prova cabal desse novo gênero que alcançaria, nos últimos anos de sua vida já inteiramente submetida à execução de um projeto que seria - do ponto de vista literário - o equivalente das grandes catedrais multisseculares descritas por Ruskin, um dos seus mestres secretos.

A essas experiências chamou de recréation vivante, embrião de uma critica literária indireta ou do que chamou igualmente de claire analyse, um texto mais curto que o ensaio, apto a introduzir o leitor no corpus da obra sem a reverberação pretensiosa e monótona da critica convencional ou acadêmica. A crítica, em síntese, de um escritor de talento que se debruça sobre os processos utilizados por outros autores, prefigura a obra de arte produzida em plena consciência.

Grande pasticheur, como escritor e como indivíduo, possuía o dom de imitar com incômoda perfeição seus amigos e integrantes do circulo intimo do qual era uma espécie de animador, transpôs Proust para muito do que escreveu essa expressão do seu talento, imitando o vocabulário, a sintaxe e os cacoetes de autores, o que às vezes dá ao leitor do seu roman-fleuve a impressão de uma colcha de retalhos, tamanha a variedade de escritas que afloram ou estão embutidas nas páginas que elaborou com as minúcias de um criador que fosse também um botânico, um entomologista, um vivissector, um biologista, um naturalista, um psicólogo; enfim, alguém que fosse ao mesmo tempo caudatário de uma herança de séculos de cultura, um criador e um crítico de grande mérito em ação. 

Não satisfeito em imitar personagens do seu mundo, parodiava estilos, proporcionando ao leitor, ao discorrer sobre os autores que amava ou que apenas desejava caracterizar o estilo de cada um, resultando dessa invenção um dos atrativos misteriosos da sua própria arte, nascida da solidão e do silêncio.

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Do crítico que não discorda nem põe em dúvida, disse Grahan Greene que está apenas pensando em comer e beber de graça. A assertiva há de aplicar-se também aos editores e jornalistas que se comprazem em reportar os fatos sem questionamento ou manipulando-os, descaradamente, em contradição com o exercício intelectual sério que se nutre, antes de tudo, mais da dúvida do que da certeza.

Ao afirmá-lo, Greene concorda que escrever – como o resultado de um trabalho do intelecto -- é, por sua natureza reflexiva, interpretação e análise; algo, enfim, muito distante da complacência e da credulidade que devem ser colocadas à prova a todo instante por aqueles que fazem uso da palavra escrita para exprimir suas idéias e concatenar seus pensamentos em sentenças repletas de significados.

Eis porque o ato de escrever, quando realizado em plena consciência, nunca é desprovido de culpa. Talvez por isso um escritor francês - Mauriac- terá concluído que não se pode ser bom católico e bom escritor ao mesmo tempo. Afinal, escrever é um ato impiedoso originalmente praticado com o estilo, instrumento cortante usado pelos antigos escribas para lapidar as letras e formar as palavras nas primitivas tabuinhas que antecederam o papel como suporte da escrita. Escrever é, repita-se, inscrever e esculpir.

O intelectual que recalca a crítica -- seja por esperteza, covardia ou conveniência -- tem naturalmente motivos de sobra para fazê-lo. Mascara ou oculta interesses dos quais se envergonha ou não pode exibir em público para não se desmoralizar nem dar vexames.

Devemos, portanto, nos acautelar de todos aqueles que falam mal da crítica, de maneira subreptícia, pois nunca ousam jamais se mostrarem às claras, perseguem os críticos que ousam ir em busca do que é bom e belo, instrui e acarinha a nossa fome de arte. Afinal, bom e belo têm, semanticamente, como sabemos, a mesma excelência de significados.

A crítica só se realiza plenamente quando baseada na exigência de qualidade que, segundo Lênin, citado por Marx, deve estar presente em tudo. Por isso, o artista cônscio do que cria – e não apenas do artista, mas qualquer profissional de talento que não dá trela à vaidade nem se deixa dominar pelo amor-próprio, um dos outros nomes da mediocridade --, não pode prescindir de sua luz.

Todas essas lições, generosamente prodigadas por Grahan Greene, expõem à admiração um escritor que sabia discernir o trigo do joio e o ruim do apenas razoável. E que, por seu talento aprimorado pela cultura e pela experiência, enobrece indelevelmente a literatura em língua inglesa.

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Disse Baudelaire que a principal objeção a ser feita à crítica seria a notoriedade que às vezes confere a alguns artistas contemporâneos. Por seu caráter analítico e investigativo, tem tudo a ver com a sua ojeriza à arte como mera reprodução da natureza. Propositor de uma crítica “apaixonada, parcial e política”, Baudelaire entende, porém, que ao público só interessa o resultado.

Contrário à rigidez dos sistemas preestabelecidos, passíveis de ridículos, defende em suas “Curiosidades Estéticas” e “A Arte Romântica”, nas quais reuniu o que escreveu sobre a arte e os artistas, especialmente sobre os artistas plásticos do seu tempo, como o gravador, desenhista e aquarelista Constantin Guys; segundo ele o paradigma do pintor da vida moderna, anteviu o belo como promessa de felicidade e o expressou, premonitoriamente, em seu desdém aristocrático, através do “homem das multidões” imerso na pobreza e na banalidade da vida quotidiana, admiravelmente debuxado em seu caráter transitório, como o resultado da razão e do cálculo que devem estar presentes na criação.

Baudelaire parece justificar plenamente a ideia de que o poeta é o melhor critico. São exemplos entre nós Murilo Mendes, Ledo Ivo e Walmir Ayala, que se utilizaram da obra alheia para exprimir suas próprias ideias e dar curso, de maneira pensada e refletida, ao tumulto da imaginação. E, ao fazê-lo, mostraram-se como críticos em ação e de maneira apaixonada, parcial e política, segundo a lição do criador do conceito de modernidade, um dos mestres de Proust, que - um pouco antes de morrer - escreveu seu último texto sobre o autor das “As Flores do Mal”, num tributo pré-agônico àquele que encarnava de maneira integral e inequívoca um dos seus modelos plenamente capazes de aproximar o espírito humano do mistério da criação.

Baudelaire entendia a crítica de um ponto de vista mais amplo. Uma critica que não encontrava modelos entre os seus contemporâneos, pois se declarava, de maneira insolente - à maneira de um dândi que vê na injúria uma arte -, uma critica parcial, apaixonada e política.

A presunção de imparcialidade parecia-lhe imoral e escandalosa aplicada à crítica, que deveria ser - antes de mais nada - a expressão do individualismo, não podendo aplicar-se à criação sob pena de restringi-la e de trair a sua própria essência elaborada  e construída pelo intelecto. Uma cosa mentale acima das conveniências e dos preconceitos e, como tal, insubmissa e rebelde a preceitos redutores.

Como Balzac, Baudelaire crê que a imparcialidade resulta da abstenção e da apatia, não constituindo, por isso, em mérito nem virtude. Tomar partido, como uma manifestação de compromisso com a vida, eis, em síntese, o primeiro dever do critico cônscio do que cria, sem temer desagradar interesses nem suscetibilidades mórbidas.

Do crítico, não como comentarista ou registrador dos faustos literários, mas como alguém que dialoga com a obra, que a interroga, investiga e a enriquece, por fim, com uma leitura que se beneficia superiormente do conhecimento posterior.

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Montaigne perde as estribeiras e desacata o seu costumeiro racionalismo quando se detém sobre a produção literária do seu tempo, em grande parte semelhante ao que se faz em nossa época dominada pelo império das aparências. Por isso, reivindicou uma polícia para as letras que fosse capaz de coibir os excessos de autores sem distinção intelectual, meros compiladores de anedotários ou piratas da obra alheia, como vemos entre nós uma caterva de escrevinhadores vaidosos e medíocres, assaltando o livro e o jornal e neles imprimindo com impudor, como triunfadores, suas abusadas ejaculações precoces.

Tais fazedores de livros, existentes em grande número em todas as épocas, em conseqüência da democratização dos meios de comunicação e reprodução gráfica, seriam o equivalente, segundo o severo juízo montaigniano, daqueles indivíduos que se dedicam à vadiagem e, por isso mesmo, sujeitos às leis que punem os desocupados e vagabundos.

O excesso de autores indica uma anomalia. No mínimo, considera-se o descaso para com a qualidade que, como disse Lênin, há de estar presente em tudo, especialmente na elaboração de um artefato estético que implica em uma exaustiva busca do conhecimento e uma aplicação paciente e contínua ao estudo dos meios e processos de expressão que parecem faltar, evidentemente, nesses pseudo-autores, muitos dos quais regiamente mantidos em sinecuras pagas pelo contribuinte.

Em sua República das Letras, escrevinhadores banais e incultos seriam peremptoriamente banidos, a biblioteca seria o lugar de autores distintos que têm algo a dizer-nos, sem a estridência espaventosa do ridículo que amamenta as vaidades comezinhas e anedóticas em proliferação facilitada pelo absenteísmo de uma critica praticada por uma gente calejada pelo hábito e desprovida daquela virtude que faz parte da essência de um verdadeiro crítico – o prazer intelectual de associar-se a um autor de talento, cuja obra passa a ser, também, de sua responsabilidade.
                                                           
Criador do ensaio - gênero através do qual a cultura dialoga com o leitor -, Montaigne amplia o pensamento dos séculos que o precederam, ao escrever na solidão de sua torre-biblioteca, realizando em plena Renascença francesa um ideal herdado de Roma – o do ócio com dignidade, somente possível para alguém, como Montaigne, que era herdeiro de uma sólida cultura humanística; possuidor de abundantes recursos intelectuais e, como um grão-senhor, vivendo confortavelmente de rendas, sem quaisquer outras preocupações pela subsistência.

Aqui, o mais tolerante dos homens mostra-se especialmente irritável, ao deparar-se com a profusão de obras caracteristicamente medíocres que assolam então os prelos e sobrepujam a dignidade da escritura produzida em paciente conluio das palavras com as idéias longamente pensadas e repensadas.

Crítico em ação, Montaigne não tem o dogmatismo que provém do homem de um livro só. Amplo é o seu espectro intelectual, Não condescende com a má qualidade que parece estar em toda parte sob as mais diversas embalagens e rótulos, alardeados pela propaganda.

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Quando moço, embriagado de literatura e indiscutível Príncipe do Tirol, Luis da Câmara Cascudo exercitou a critica literária, enfocando a produção de autores norte-rio-grandenses reunida em “Alma Patrícia” [Atelier Tipográfico M.Victorino, Natal, 1921], reeditado 77 anos depois pela Fundação José Augusto, IV volume da Coleção Biblioteca Potiguar, numa edição chinfrim que se desmancha nas mãos do leitor ao ser folheada...

Tinha o autor 22 anos ao estrear em livro, inspirado na apreciação da obra de dezoito contemporâneos, dos quais alguns já falecidos, como Ferreira Itajubá, considerado o poeta homérico do Rio Grande do Norte, autor de “Terra Natal”, um dos nossos livros canônicos. Formado desde cedo na escola do humanismo, em sua época de menino e moço resumida nas lições do poeta Henrique Castriciano, de quem escreveu a biografia, Cascudo sentia-se elo de uma corrente e, por isso, esmerava-se em estudar e fazer conhecida a literatura local, por entender que o talento brilha melhor entre indivíduos de mérito. Ora, não adianta ter uma boa caligrafia num universo de manetas que não sabem ler.

Por isso, como primeira tarefa dispôs-se a colocar em evidência os talentos de seu tempo, escrevendo sobre os mesmos, como antes fizera com o proto-poeta potiguar Lourival Açucena, o seu mestre Castriciano, um intelectual cosmopolita cuja maior obra terá sido a criação da Escola Doméstica de Natal – que lhe sobrevive e engrandece o seu nome --, pois, de resto, era reconhecidamente preguiçosa e devia ter algum distúrbio que o fazia dormir até durante as solenidades de que participava, inclusive como vice-governador do Estado.

Cascudo retribuiu e demonstrou sua gratidão para com Castriciano construindo-lhe com palavras um monumento funerário que está a exigir uma reedição. “Nosso amigo Castriciano” conferiu-lhe, de fato, uma segunda vida, só possível, como diria Proust, através da imortalidade da arte. Penso que, ao fazê-lo, em sua estreia como escritor, Cascudo nos disse que espécie de intelectual e de artista seria, pois começou valorizando um poeta da terra que, embora sem obra significativa, encarnava de maneira exemplar o literato fim de século, culto e sofisticado amante dos livros e propagandista de ideias novas.

[Faz Cascudo a crítica impressionista, como faz todo escritor, para gáudio dos leitores que procuram antes o prazer do que o tédio que resulta, freqüentemente, da chamada critica acadêmica, firmada num jargão de especialista que desencoraja todo aquele leitor que não se entrega ao masoquismo de uma leitura forçada. Cascudo, ao contrário, escreve uma espécie de critica que nos estimula a ler o autor que ele propõe, às vezes, de maneira generosa, segundo um estilo personalíssimo que seduz e enreda, pois construído com aquele contagiante entusiasmo que, ainda citando Proust, seria o primeiro sinal do autentico talento. Do talento, como o de Cascudo, que tem algo a nos dizer e o diz da melhor forma, que é o que se espera de um escritor que não desmerece nem degrada o seu ofício.]

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Escrevendo em 1838 o que seria o cume de sua já célebre Comédia Humana, Balzac insere em “Esplendores e Misérias das Cortesãs”, ao falar das mulheres que se vendem, um curto e exato debuxo do que seria um critico em ação naquele momento vivido na França, no efervescente período entre a República e a Restauração. Entorpecido na labuta, para quem tudo são palavras, palavras, palavras, o crítico é caracterizado, em síntese, por uma profunda despreocupação para com as fórmulas da arte.

Ouçamo-lo:

 “[o crítico] leu tantas obras, viu tantas passarem, acostumou-se tanto às páginas escritas, passou por tantos desfechos, viu tantos dramas, fez tantos artigos sem dizer o que pensava, traindo tão freqüentemente a causa da arte em favor de suas amizades e de suas inimizades que adquire repugnância por todas as coisas e continua assim mesmo a julgá-las [...]” etc.

 

Qualquer semelhança com o que vemos hoje não será mera coincidência. Esse crítico, captado e descrito pela argúcia balzaquiana não parece ser exceção em nossos dias, quando a critica parece ter sucumbido ao que chamamos “dever de ofício”, ou seja, uma obrigação que cumprimos sem nenhum prazer e às vezes de má vontade, para não agredir os costumes vigentes numa época atéia em que o êxito é o supremo objetivo a ser alcançado a qualquer preço.

 

Tais sentenças se disseminam por toda a caudalosa obra de Balzac, que antevê a importância da critica para o artista e para a cultura, especialmente quando a volúpia consumista excede a reflexão. Sem a crítica, a obra exibiria apenas uma palidez de grama seca, pois dela estaria ausente o atrito que resulta do confronto de inteligências capazes de extrair, de uma página, o sentido profundo e secreto das entrelinhas e de tudo o que, por astúcia ou cálculo, o autor dissimulou no texto entregue à curiosidade ou à usufruição do leitor em busca não apenas da satisfação, mas do conhecimento que vai além da superfície do texto.

 

No entanto, Balzac encarece a critica como artigo de primeira necessidade à saúde da cultura. Mesmo sabendo que a vaidade do poeta o fará preferir o suplício ao julgamento de sua obra. Seria a critica não uma atividade delegada a terceiros – aos críticos --, mas parte inerente do processo criativo do escritor. Uma critica não imparcial e política, pois praticada – parcialmente, isto é, apaixonadamente -- pelo autor em beneficio de sua própria criação.


Refletindo sobre a lei que rege o escritor, visto como igual e, mesmo, superior ao estadista, confessa Balzac que o tempo da imparcialidade ainda não chegou para ele, que, no pleno exercício de sua condição de homem de letras, declara uma dedicação absoluta a princípios, como alguém que na moral e na política deve ter opiniões imutáveis, inerentes a um professor de homens que não precisam de mestres para duvidar. Em síntese, seria a imparcialidade no crítico uma forma de conivência ou capitulação diante do dever de ir mais além daquele ponto no qual o autor, por cansaço, incompetência ou satisfação, decidiu parar para escrever a grande, a baudelairiana, a inominável palavra.

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